Por: Leandro Machado
No meu texto anterior falei bastante sobre a importância de não só conhecer seus públicos, como saber a maneira mais estratégica de engajá-los. Hoje avançaremos nesse tema para entender uma das estruturas essenciais em qualquer estratégia ESG que se preze: a Matriz de Materialidade.
Trata-se de uma ferramenta poderosa que permite às empresas aprofundar sua compreensão das questões ESG sob a ótica de seus principais stakeholders e tomar decisões informadas e estratégicas.
Neste artigo, vamos explorar como a matriz de materialidade se encaixa no contexto mais amplo do capitalismo de stakeholders, os principais métodos utilizados para construí-la e exemplos de grandes empresas que a adotam, entre outras questões.
Ainda que você já tenha ouvido falar do tema ou o conheça com mais profundidade, vale a pena repassar alguns conceitos básicos.
O conceito de Matriz de Materialidade e o capitalismo de stakeholders
A matriz de materialidade é uma ferramenta visual que ajuda as empresas a avaliar questões de ESG em termos de sua importância para os stakeholders e para o sucesso da organização.
O conceito de capitalismo de stakeholders, proposto por R. Edward Freeman, defende que as empresas devem considerar as demandas de todos os seus públicos de interesse, incluindo funcionários, clientes, fornecedores, comunidades e acionistas, em suas decisões de negócios.
Portanto, a matriz é uma maneira eficaz de colocar esse conceito em prática, identificando as questões mais relevantes para cada grupo de stakeholders, contrastando com as questões mais relevantes para o negócio e priorizando ações de acordo com sua materialidade.
Modelos de Construção da Matriz de Materialidade
Existem diferentes modelos para construir uma matriz de materialidade, mas todos eles envolvem a identificação e a avaliação das questões de ESG relevantes para os stakeholders e para a empresa. Algumas etapas comuns, explicadas muito sucintamente, incluem:
1. Identificar os stakeholders: Determine quais grupos são afetados pelas atividades da empresa e quais têm interesse em suas decisões de negócio (e em seus impactos nas dimensões ambiental, social e de governança).
2. Engajar os stakeholders: Consulte os stakeholders para entender suas preocupações e expectativas em relação às questões de ESG. Se quiser entender melhor esta etapa, leia meu artigo da semana passada.
3. Identificar questões de ESG: Faça uma lista das questões de ESG que são relevantes para os stakeholders e para o negócio.
4. Avaliar a materialidade: Classifique as questões de ESG com base em sua importância para os stakeholders e para o sucesso da empresa.
5. Visualizar a matriz: Crie uma matriz visual que mostre a relação entre a importância das questões para os stakeholders e para o negócio.
Processo de materialidade da Nestlé: Seleção de tópicos materiais>Contexto Externo>Engajamento de Stakeholders>Avaliação da materialidade>Revisão das estratégias>Publicação. Fonte: https://www.nestle.com/sustainability/responsible-business/materiality
Não custa repetir: o engajamento dos stakeholders é uma etapa crítica na construção da matriz de materialidade. Envolver adequadamente seus públicos permite que as empresas compreendam suas preocupações e expectativas em relação às questões de ESG, garantindo que a matriz reflita adequadamente as prioridades de todos os grupos afetados.
Além disso, o engajamento dos stakeholders pode ajudar a identificar oportunidades e riscos emergentes, permitindo que as empresas se adaptem às mudanças no ambiente de negócios e às expectativas dos seus públicos de interesse.
Quantos stakeholders preciso consultar?
Assim como não há um processo único para construir uma matriz de materialidade, tampouco há uma fórmula mágica no que diz respeito ao número de stakeholders que devem ser entrevistados.
As organizações com melhores práticas são aquelas que, pelo menos:
- consideram um mix de entrevistas em profundidade com pesquisas quantitativas (survey/formulários), geralmente numa sequência entrevistas para levantar hipóteses » pesquisa quanti » entrevistas para validação.
- buscam um número relevante de respondentes para cada grupo de stakeholder prioritário.
- no que tange aos questionários internos, garantem que as proporções de cada grupo hierárquico da organização sejam observadas, evitando um resultado enviesado.
- consideram os princípios para participação pública, como escrevi semana passada.
É para reportar ou para a estratégia?
O que é mais material do ponto de vista do relatório de sustentabilidade pode diferir do que é priorizado em uma estratégia corporativa.
A geração de relatórios e o desenvolvimento da estratégia envolvem uma análise detalhada de questões materiais e ambos se beneficiam da consulta aos stakeholders. Portanto, faz todo o sentido que os diretores e equipes de sustentabilidade geralmente usem uma avaliação de materialidade para ambos os propósitos.
Mas relatórios e estratégia não são a mesma coisa. Há uma tensão fundamental entre dois objetivos: decidir o que divulgar em seu relatório de sustentabilidade (basicamente voltado para o passado); e decidir o que focar em sua estratégia (principalmente voltado para o futuro). Os tópicos priorizados e as partes interessadas contatadas podem ser diferentes.
Do ponto de vista dos relatórios, as organizações devem priorizar os tópicos com base nos maiores impactos de sua organização e nas coisas que influenciam as decisões das partes interessadas.
Do ponto de vista do desenvolvimento da estratégia, o objetivo é priorizar o que uma organização pode ou deve fazer. Nesse sentido, perguntas sobre o que está ao alcance da empresa para mudar e quais ferramentas, grupos ou inovações existem para ajudá-los a fazer isso podem ser bastante úteis para a equipe de sustentabilidade.
Exemplos de Matrizes de Materialidade
Grandes empresas no Brasil e ao redor do mundo têm adotado a matriz de materialidade como parte de suas estratégias ESG. Por exemplo, a H&M Group expandiu sua análise de materialidade em 2022, incorporando a localização na cadeia de valor onde os tópicos materiais apresentam o maior impacto.
Matriz de materialidade H&M. Fonte: relatório anual da empresa
Outras empresas, como a Nestlé e a Unilever, também utilizam matrizes de materialidade para identificar e priorizar questões de ESG em suas operações globais.
No Brasil, a Natura&Co (holding que controla as marcas Natura, Aesop, Avon e The Body Shop) divulgou uma nova matriz de materialidade em seu relatório anual 2022 (publicado este ano), conforme figura abaixo.
Seguindo uma tendência global, a Natura avaliou seus temas aplicando “dupla materialidade”, ou seja, a avaliação de como temas ESG podem criar riscos para a continuidade dos negócios e simultaneamente quais os impactos da empresa sobre a economia, as pessoas e o meio ambiente.
Nossos temas materiais foram avaliados aplicando dupla materialidade, ou seja, considerando impactos ambientais e sociais das atividades da empresa sobre a economia, o meio ambiente e as pessoas (incluindo direitos humanos), bem como o impacto comercial das questões ambientais e sociais sobre o sucesso dos negócios, incluindo o desempenho financeiro e o valor da empresa.
Relatório Anual Natura 2022
As matrizes de materialidade têm evoluído ao longo do tempo, à medida que as empresas e os stakeholders reconhecem a necessidade de abordar questões de ESG de maneira mais abrangente e integrada.
Algumas organizações estão adotando abordagens setoriais para a materialidade, identificando questões específicas do setor que são relevantes para seus negócios e para os públicos de interesse. Outras, como havia mencionado acima, estão incorporando a análise de riscos e oportunidades em suas matrizes de materialidade, ajudando a identificar áreas onde a empresa pode gerar valor sustentável a longo prazo
A Importância da Matriz de Materialidade na Estratégia ESG
Como vimos, a matriz de materialidade é uma estrutura essencial dentro da estratégia ESG, pois ajuda a:
1. Identificar questões relevantes: A matriz de materialidade permite que as empresas identifiquem as questões de ESG que são mais importantes para seus stakeholders e para o sucesso do negócio.
2. Priorizar ações: Ao classificar as questões de ESG com base em sua materialidade, as empresas podem priorizar ações e recursos de acordo com sua relevância.
3. Comunicar-se com os stakeholders: A matriz de materialidade fornece uma maneira visual de comunicar as prioridades de ESG da empresa aos seus públicos de interesse, demonstrando seu compromisso com a sustentabilidade e com a transparência.
4. Monitorar o progresso: A matriz de materialidade pode ser atualizada periodicamente para refletir mudanças nas expectativas dos stakeholders e no ambiente de negócios, ajudando as empresas a monitorar seu progresso em relação às metas de ESG.
Materialidade e Inovação
A matriz de materialidade pode igualmente ser uma fonte de inovação, ajudando as empresas a identificar oportunidades para melhorar suas práticas de ESG e para ampliar mercados.
Ao analisar as questões de ESG em termos de sua materialidade, as empresas podem identificar áreas onde podem se diferenciar e criar vantagem competitiva. Isso pode incluir o desenvolvimento de novos produtos e serviços, a adoção de tecnologias mais sustentáveis ou a implementação de práticas de gestão mais eficientes.
A Matriz de Materialidade como processo contínuo
É importante lembrar que a materialidade não deve ser vista como um exercício isolado, mas sim como parte de um processo contínuo de engajamento e aprendizado com os stakeholders. A matriz fornece uma visão instantânea das prioridades de ESG em um determinado momento, mas as expectativas e causas dos públicos, assim como o ambiente de negócios estão sempre evoluindo.
Portanto, é fundamental que as empresas mantenham um diálogo constante, aberto e construtivo com seus públicos de interesse, atualizando regularmente a matriz de materialidade para refletir as mudanças no contexto, nas prioridades e nas condições do mercado.
A Matriz de Materialidade como catalisador de mudança
Em suma, a matriz de materialidade é uma ferramenta valiosa para ajudar as empresas a navegar no complexo cenário de ESG e a tomar decisões informadas e estratégicas, alocando recursos de maneira eficiente.
Ao se engajar de forma efetiva e contínua com os stakeholders e atualizar regularmente a matriz de materialidade, as empresas podem identificar oportunidades de inovação e riscos emergentes, ao mesmo tempo em que fortalecem seus relacionamentos com os públicos de interesse.
Ao adotar essa abordagem proativa e colaborativa, as empresas geram valor não apenas para si mesmas e seus acionistas, mas também para todos os seus públicos de interesse e para a sociedade como um todo.
Como dizem, é o puro suco do capitalismo de stakeholders.
LEANDRO MACHADO
Cientista político, especialista em advocacy e engajamento.
Sócio cofundador da CAUSE, Leandro é mestre em administração pública pela Harvard, com ênfase em liderança, gestão e ciências da decisão. É um dos fundadores do conselho diretor da RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade e do Tem Meu Voto. Cofundou o Movimento Agora! e é membro do júri internacional do Global Teacher Prize.
Em 2015, foi eleito como Jovem Líder Global pelo World Economic Forum.
A CAUSE é uma consultoria que trabalha com ESG e programas de impacto, o que inclui:
- Estratégia e governança para sustentabilidade;
- Análise e benchmark para identificar gaps em ESG;
- Estratégia de performance em ESG;
- Cultura e engajamento em ESG;
- Análise crítica de relatos;
- Comunicação e reporte em ESG;
- Desenvolvimento e implementação de programas de impacto positivo.